O alto da colina pode ser um local em que se é possível sentir um certo tom de empoderamento, mas, também, de leveza. De contato com o transcendental. De lá, a paisagem se curva ante sua geografia elevada e o céu pode ser reverenciado com uma maior proximidade física. Com a brisa ainda fresca pela manhã nascente, o horizonte oferta ao viajante um cenário místico, crepuscular, formado por uma paleta de cores que sai de um roxo mais vivo a um tom rosado sereno. Esse é o cenário imagético que o saz, com seu sonar típico, cria no inconsciente do ouvinte. Tendo ela como instrumento único e, portanto, uma protagonista absoluta, Flying Through The Valley propõe uma ambiência imbuída em um esoterismo tão profundo que chega a ser palpável. Espiritual.
O sonar aveludado e levemente adocicado do sintetizador não oferece apenas um senso místico, mas traz, consigo, um frescor de caráter gélido interessante. Rapidamente, porém, a sonoridade é agraciada por um ressoar adocicadamente ácido vindo da sanfona. Sob uma interpretação curiosamente cínica, o instrumento vai se confundindo por entre a inserção de um toque agudo adoçado com níveis menores de açúcar vindo do duduk. Com essa atmosfera, Misty Dawn é como se o ouvinte assumisse a função de um personagem onipresente observando uma mulher de joelhos, em pleno deserto, reverenciando o nascer do Sol com o mais puro e profundo senso de humanidade. Com essa visão, a faixa soa como uma espécie de gratidão por mais um dia, por mais uma possibilidade de fazer valer a existência no mundo terreno e de, ao menos, tentar fazer a coisa certa.
Existe, aqui, um toque curiosamente sombrio que vai sendo transpirado do solo. Um calor sem razão de ser, mas que traz consigo altas doses de acidez. De um desconforto propositadamente latente. Esse cenário é motivado pelo sonar grave do sintetizador em união com o sobrevoo dramático do kemenche. Por meio das inserções sonoras percussivas, Dust Devil Dance acaba assumindo uma força estrutural que a torna contagiante em sua profundidade estética. Forte e enérgica, ainda que minimalista, a faixa traz, conforme se desenvolve, uma atmosfera dançante, mas curiosamente cínica, provocante, insatisfeita.
O drama apresentado na nova introdução chega a fazer o ouvinte transpirar, suas pupilas dilatarem e, seus pelos, eriçarem. O clima de suspense aqui criado é tão intenso que deixa a atmosfera fria em seu sereno envolto em uma paisagem curiosamente sombria. Curiosamente, porém, For All The Animals, conforme se desenvolve, vai oferecendo ao ouvinte paisagens que transitam entre o sereno e o nebuloso, o delicado e o bruto. Ainda que isso de fato aconteça, a faixa é agraciada por uma subdivisão que encaminha o ouvinte para um ambiente completamente novo, mesmo que sob a mesma narrativa. Nele, o espectador se vê em um local de extrema brandura e veludo, mas de forma hipnótica. Afinal, por trás desse véu, a realidade continua a mesma, densa e sombria.
The Tale Of The Desert Mountain é um material instrumental que se vale pelas propostas sensitivas e sonoramente experimentais. Fresco e dramático, mas também capaz de soar sombrio, espirituoso, transcendental e esotérico, aqui com grande menção à faixa The Shrine e seu minimalismo estético, mas não sensorial, ele não apenas oferece um caminho de gratidão ou uma espécie de reconexão consigo mesmo. Já a partir de suas primeiras quatro faixas, ele dá ao ouvinte a chance de sentir, de se permitir se introspectar. Tudo através de ambiências melódicas singulares e minimalistas que remetem a cenários marroquinos e turcos.
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