Ethos: Son of a Sharecropper, de Terry Blade, é uma obra-prima

 Ao receber Ethos: Son of a Sharecropper e ouvi-lo com atenção você entende que a vida pessoal se mistura às raízes e à cultura que moldaram seu caráter e quem é Terry Blade, entende: “que a ‘música negra’ inclui a música tradicional americana”, como afirma o artista. O ouvinte que inicia a playlist, sem ter uma explicação prévia do que de fato ele quer nos dizer, a impressão sobre a obra, ainda assim, é de que ele se debruçou sobre algo grande, algo em que a posteridade guarde seu nome e saiba o enorme talento que ele possui.

O álbum de 10 faixas mescla história, força, identidade e uma energia capaz de nos emocionar e nos encaminhar por uma jornada em suas melodias. Blues, country, americana, gospel se entrelaçam com narrativas comuns ao ser humano, como amores difíceis, tristeza, vício, compaixão, sexualidade… . E Terry une esses enredos com sua substancial mente criativa, mas o mais importante, transparece cada estilo e o próprio significado do título, e evidencia o que pretende nos dizer: minha música está sendo contada pelas cordas, pela minha herança cultural, por meus sentimentos e por quem eu sou.

E, sem dúvida, o compositor americano baseado em Chicago, nos dá algo significativo. Sim, muito. Conhece a história do Blues? Canções de trabalho afro-americanas, nas grandes plantações de algodão? Sabe como os instrumentos surgiram? Que história há por trás de cada um? O banjo, por exemplo, é um instrumento musical originário da África, foi levado para a América pelos escravos negros, no século XVII, e adotado por grupos ambulantes de músicos brancos, no século XIX. Muito usado na música folk norte-americana e pelos grupos de bluegrass e importantíssimo para o jazz.

Sabe o que é meação? Bom, não consigo levar esta discussão para longe, até porque em nosso país (Brasil), os autores divergem entre sistemas e exploradores (feudal, capitalista), mas para que o leitor entenda, a meação (um sistema) é permitir que o trabalhador rural (meeiro) plante e tenha participações nos lucros (in natura, para subsistência e quem sabe, ter um pedaço de terra só seu), mas sabemos que nada funciona/funcionou como se escreve e muito menos em tempos de escravidão.

E tão considerável quanto trazer isso para a música, é falar abertamente sobre quem é o artista. Quais são suas escolhas e como se vê diante de um mundo em que boa parcela ainda é inquisidora. Terry Blade cruza com Ethos: Son of a Sharecropper, o afro-americano queer com o descendente de meeiros americanos negros em Colerain, Carolina do Norte, e nos leva para o campo da arte, onde tudo se encaixa e forma um lindo desenho, relato e emotivo conjunto sonoro. Sem contar no desenvolvimento pessoal, quando fala das matriarcas ou inclui panoramas históricos; tudo tem um ponto comum: vida e música.

Então, vamos ajustar o passo e seguirmos juntos nesta caminhada!

Iniciamos a coleção com “Come Home”. E soa tão maravilhosa! Dá aquele aperto no peito em sentir o que o intérprete nos coloca; uma fragilidade tocante, como quando entona os versos e suplica que o outro volte para casa. As relações pessoais se apresentam e observamos a delicadeza do compositor em experimentar um estilo forte e marcante, para embrulhar um lirismo comovente sobre alguém que é abandonado, resultando em uma abertura que nos faz querer parar tudo para continuar ouvindo seu trabalho. “Come Home” exala elementos da música americana e traz uma classe imponente, operada pelo talento de Terry.

“Won’t Be Around” inicia com lindos dedilhados e todo encanto das cordas para nos contar, com veemência, que a magia acabou; que ele não estará mais por perto. Um ritmo sensual e intenso na performance aparece para encerrar um ciclo em um relacionamento, do qual ele não sente mais relevância. Dramático, tenaz; busca nas mudanças de tom apresentar seu lirismo, com uma tessitura vocal maravilhosa. Batida suave, às vezes lá no fundo, e teclas marcantes acompanham o ritmo nesta linda faixa, que embaralha soul e um country alternativo.

“Rigor Mortis” traz uma sofisticação na percussão, reúne lindas cordas, conta sua história com verdade e não saímos daqui sem sentir mais uma apresentação visceral de Terry Blade. Riffs se misturam ao trabalho vocal e podemos notar as linhas intensas passando em camadas diferentes, exibindo a ideia de lamento ou de uma oração. Ah, difícil não se emocionar por aqui, com este estilo americana.

“Rainbow Child” é uma canção que olha para si mesmo. E ao fazê-lo, expressa seus sentimentos de forma sensível, e de certa maneira, para que o ouvinte também se veja ali. Todos nós temos vontade de mostrar para aquela criança que fomos um dia, que passamos por dificuldades, e que ainda atravessamos algumas, mas contemple: estamos aqui! E para além desta poesia que lida com questões pessoais e de sexualidade, nossa atenção mira também na linda melodia. Começamos com uma gaita, violão e uma base serena, mas no mesmo passo, profunda, que tece tudo junto à voz de Terry e aos backing vocals maravilhosos. Enquanto isso, a guitarra desliza riffs melódicos e mais uma vez, uma canção rouba nosso coração. Um folk alternativo para derreter nossos sentimentos, à la Neil Young.

“Talk About It” oferece um ombro amigo, uma voz poderosa, emocionante, combinada com os dedilhados delicados e envolventes do violão. Essa canção é para aquele dia em que sentimos muita necessidade de colocar para fora toda a angústia que nos aflige e conversar com alguém. Um recado especial do artista para quem se sente preso nas emoções e precisa de alívio no peito. Terry trabalha o vocal com adições cruzadas e belíssimos melismas. Linda faixa acústica! Lembro imediatamente de Tracy Chapman.

“Fiddle & Banjo (Interlude)” é uma entrevista com Walter Brown em Sparta, Condado de Alleghany, Carolina do Norte, sobre “Sinais de plantio, experiências de mineração, superstições, danças, blues, banjo e violino, relações raciais, cantores de igreja”, realizada em setembro 1978. Um interlúdio, de domínio público, dos arquivos do American Folklife Center, U.S. Library of Congress. O trecho é uma forma de trazer, em formato de áudio, o contexto cultural de maneira mais óbvia e enfatizar o quanto suas heranças são importantes e marcam sua trajetória.

“Wasn’t Mine” é uma narrativa sobre perceber que não conseguimos carregar mais do que nosso corpo permite. Se já temos problemas suficientes, talvez trazer o de outro para nosso mundo não seja o melhor a fazer. E a maneira como nos é apresentada a canção, soa como se Terry estivesse narrando um acontecimento, uma história que podemos imaginar, embalados pelas cordas bluegrass, vocais quentes e harmônicos, mas tão sentimentais quanto.

“Grandma’s Kitchen” traz aquela memória afetiva que aquece o coração e estamos na cozinha da vovó correndo e esperando pelas delícias. Ah, temos banjo, ritmo, alegria, movimento e o mais importante: a lembrança de quem nos olha e através do olhar sabemos que respeito é fundamental. Mulheres fortes, que enfrentaram inúmeras dificuldades para criarem seus filhos com valores e apesar de trazer a ideia de maneira engraçada, tudo ganha muito sentido observando o quanto devemos à vitalidade e fortaleza das nossas mães, avós e tias negras. Aqui, estilos se cruzam e a festa é recheada: música afro-americana, caipira, blues, gospel…vários gêneros.

“Jimmy James” tem lindas texturas. Percebemos as adições sonoras combinando com a proposta lírica e os vocais, mais uma vez, penetrantes, blues, que cantam e exibem sua tristeza e melancolia, mas de maneira tão linda, que podemos ouvi-lo cantando para sempre. A condução das cordas, backing vocals e Terry oferecendo sua delicadeza e sentimento, para falar de vícios e como é difícil tentar se livrar disso, é tocante.

“In My House” chega com teclas, guitarra e uma condução visceral, poderosa; uma entrega country blues, simplesmente incrível. Backing vocals, melismas e uma tessitura afinadíssima oferecem algo que muitos sentem e vivenciam uma boa parte da vida: uma ponta de tristeza, melancolia e insatisfação com a vida chamada depressão. Um tema difícil de falar, mas que o artista consegue arquitetar com beleza e dar a quem ouve algum conforto. Lembro de Ray Charles nesta condução.

E assim encerramos a coleção.

Ethos: Son of a Sharecropper brilha como ouro. É um conjunto expressivo e que nos entrega muito: arte, vida, inteligência e amor. E combina, satisfatoriamente, estilos; misturas geniais estendidas, de e para uma geração, que precisa manter a história viva, saber de onde veio e principalmente, quem é. OUÇA. SINTA. E aproveite o lindo e excelente trabalho de Terry Blade.

Quer acompanhar o trabalho de Terry Blade? Basta acessar os links.

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