Havia dois amigos na estrada. Um usava uma venda nos olhos e o outro cambaleava por beber vinho em demasia, mas ainda assim, caminhavam juntos até aonde pudessem chegar. O nome da dupla era Destino. E enquanto cantarolavam e marchavam em frente, notaram a presença de um terceiro elemento que os seguia: o amigo Tempo.
Notem, me veio à mente essa imagem simbolizando que ninguém nasce pronto. Há encontros e desencontros durante nossa permanência nesta linha temporal. Uma bagunça que se ordena à medida que realizamos escolhas. E devo dizer, não temos domínio sobre como algumas questões podem acontecer. Um eterno seja o que deus quiser e vamos lá! Assim vejo o assunto: somos feitos de decisões e consequências (não há um plano traçado em que podemos adivinhar o amanhã) e o tempo acompanha e nos oferece uma boa história. Há tudo para dar certo, como tudo para dar errado.
E nesta caixinha também aparecem as emoções: medo, felicidade, a aflição e a pureza do propósito. Apresentam-se mesclas de vibrações ao olhar para as etapas da existência. E a depender de onde você esteja, vai entender, ainda que muitos questionamentos se ergam, vai notar que somos feitos de vida, e, aconteça o que acontecer, devemos aproveitar a jornada.
The Laconic, o artista responsável para que eu trouxesse a filosófica introdução, que me lembra algumas discussões sobre conceitos de eterno retorno de Nietzsche, pontos de vista de Walter Benjamin, ou ainda, o mito de Sísifo, vem de Chicago, Estados Unidos. “Amor Fati” é seu segundo álbum de construções instrumentais, ou, músicas sem palavras, como The Laconic gosta de denominar seu trabalho. São nove faixas que lidam com uma gama de sentimentos; cenários que nos levam do quente para o frio, e, o contrário. Leva-nos também do deslumbrante até o obscuro; notas que conversam com o ouvinte. Há muitas cordas, batidas espalhadas, há músicas em que o instrumento dialoga com você e te conta sobre o passado, o presente e imagina o futuro. A coleção abraça e desperta emoções.
Gêneros? Não ouso especificar, mas adianto que há guitarras misturadas a violoncelos, bateria como base rítmica substancial e percussão que propaga fascínio, flautas, teclas e elementos eletrônicos para texturizar o ambiente.
E a que, exatamente, remete o título, “Amor Fati”?
Bom, o músico nos oferece esta referência: “Amor fati é uma expressão latina que significa “amor ao destino [de alguém]”. O filósofo estóico Epicteto afirmava sua essência como: não busque que as coisas aconteçam do jeito que você quer; ao contrário, deseje que o que acontece, aconteça do jeito que acontece: então você será feliz”.
“Fate” abre o disco. Constrói drama, entusiasmo, receio: uma aventura que plana como as asas de um pássaro. Primeiro entregando belíssimos dedilhados combinados com uma percussão inspiradora e teclas cintilantes. Logo, a bateria entra profunda e emoções brotam de todos os cantos. A flauta nos dá a sensação de desafio e superação: é como se estivéssemos em uma corrida ultrapassando obstáculos. Os elementos eletrônicos trazem texturas coloridas e um misto de “vai dar tudo certo” com “o que está acontecendo?” borbulha na canção e somos levados para uma verdadeira atmosfera de acontecimentos. No mesmo passo há um clima tenso, batidas acordam o desconhecido e outros caminhos nos pedem para escolher. O baixo, e um crescente suspense, circunda o ambiente e tudo que precisamos fazer é seguir em frente. Mesmo sem nos dizer uma única palavra, “Fate” nos mostra muito em seus mais de 8 minutos. É onde podemos dizer que o rock progressivo exibe seus traços com guitarras que confabulam com o ouvinte.
Em seguida, “Nona” se apresenta. A mais breve de todas. Os sintetizadores borbulham, brilham, e a batida nos provoca: bate de uma ponta a outra e entrega desde um aperto no peito à conclusão de uma etapa para que a próxima já se aproxime e saibamos para que lado pender. Prontos ou não, lá vamos nós. Clima tenso.
“Saber” já chega entregando suas teclas ansiosas, com um ar anos 80. Sem demora surge uma expectativa otimista. Uma batida jazzística encontra oportunidade, alguma salsa e um ambiente completamente abundante em boas vibrações: tem paixão, calor, entusiasmo. Cresce a bateria, nos sentimos grandes desbravadores providos de poder e a faixa nos convida à dança. Uma percussão incrível, cordas que juntas nos oferecem confiança, e, além de poderosas, há nas teclas uma suavidade que também preenche o espaço.
“Decima” traz mistério, evolução, envolvimento. O sintetizador ilustra texturas, ondula junto à guitarra, cria profundidade com o baixo, combina com a evolução da batida e nesta etapa da vida somos mais impetuosos, decididos. Há uma firmeza neste desenho sonoro, embora rápido, é uma harmonia que nos impulsiona, nos leva em determinação.
E uma das construções harmônicas mais belas da coleção, sem dúvida, é “Dust”. Os violoncelos são marcantes. Cavalgamos em um campo aberto, sem medo, aproveitando cada segundo como se fosse o último. As teclas plantam emoções. Há uma cumplicidade que rodeia o ambiente, criada pelo baixo e pela guitarra; uma arquitetura que fabrica sinos em nossa imaginação; traz uma batida que segura cada instrumento em suas costas e amplia os horizontes nos levando para aonde nossos pensamentos desejarem. É luz para os dias difíceis. Fantástica faixa. Cabe em um cenário cinematográfico com perfeição.
“Morta” chega com uma melodia mais sombria, atmosférica, dura. Existe espaço para os sintetizadores trabalharem seus argumentos tensos e enigmáticos, enquanto salpicam batidas rápidas acompanhadas de cordas intensas e incisivas ao mesmo tempo. Há um ar lúgubre que pesa o ambiente.
Já em “Mirror” as teclas buscam ondular a atmosfera, os sintetizadores nos proporcionam a expectativa. Estamos olhando para nosso reflexo e procurando uma ponta em que possamos nos conectar com o que foi, o que é, e com o que será. Um ciclo que se quebra e se refaz. A batida, junto às texturas, cria o ambiente perfeito para nos movimentarmos neste sentido: um universo observável que ecoa emoções. Enquanto isso, as guitarras trazem o ar dramático, intenso e profundo para a faixa.
“Refuge” é uma viagem no tempo. Salta de um ponto ao outro em sequência contínua. Elabora em seus mais de 18 minutos de duração uma concentração impecável de dinâmica instrumental: cada um entra e compõe com o outro na medida ideal. Desenham medo, angústia, dor, amor, desejo, derrota, vitória, tudo que nos cerca, independentemente de qual de suas vidas esteja, em qual de seus universos o personagem incorpore, em qual montanha você coloque sua pedra para que dia após dia você a leve e a encontre lá. É uma peregrinação completa de sintetizadores enérgicos, bateria acentuada, guitarras, teclados e a delicadeza, e, na mesma proporção, a força dos violoncelos. Há ainda a participação de uma trompa inglesa na harmonia. O interessante é que, em determinado momento, a grandeza da performance é tão imersiva que quase ouvimos uma voz nos conectar a esta cena, de encontros e desencontros; há uma explosão de conexões, que, aqui, nos faz apenas grãos de areia na imensidão que a música é capaz de nos ofertar. Um concerto épico que cabe em uma trilha cinematográfica com louvor.
Finalizando a audição de “Amor Fati”, “Equinox” toca para trazer luz diretamente ao nosso coração. Melodia calma; nem fria, nem quente demais. Suave como o primeiro dia do outono e o começo da primavera. As guitarras aparecem imponentes, teclas doces surgem, há esperança no ar. Tudo cintila. Ainda que dias tempestuosos nos tragam dores, não devemos esquecer o que há de bom. Sensação entregue pela harmoniosa flauta, junto à batida comportada e linhas de baixo e guitarras incentivadoras. Uma finalização simplesmente apaixonante. Há vida, acima de tudo.
A despeito de suas crenças e como você enxerga o mundo, vai notar que o destino, ou seja lá o que sua razão denomina para tal palavra, movimenta o universo, dentro de uma perspectiva caótica, cega, que acerta os alvos sem escolher antecipadamente. Mas acerta! (E não, também!). E o tempo é quem nos conta uma boa ou má narrativa. Cabe ainda salientar que dentro disso há medo, insegurança, felicidade, amor… Quer exemplos? Olhar pela janela e pensar que um dia tudo que você contempla pode acabar; um sonho infantil que se torna realidade; um encontro amoroso inesperado; um acontecimento que você considere sorte… Ah, compor em vez de tocar um instrumento ou cantar, tudo faz parte de algo complexo de explicar resultante de nossas escolhas. Eu penso. Devolvo o pensamento em liberdade, caso discorde!
Em complemento, e, antes de convidar o ouvinte para que aprecie o álbum de The Laconic, é importante destacar o empenho, dom e apresentação sensacional dos músicos que colaboraram com o artista para a elaboração da obra. Sem contar a veia criativa e repleta de talento que The Laconic carrega.
Para concluir deixo uma certeza: o álbum disponibiliza mais do que combinações e arranjos. É música instrumental que nos tira o fôlego, nos dá perspectivas e com isso trabalhamos a imaginação, variamos emoções e recebemos um presente vultoso.
Ouça neste minuto, e, em outros tantos, o álbum instrumental de The Laconic, “Amor Fati”. Boa audição.
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